O trabalho “Igreja e italianidade: Rio Grande do Sul (1875-1945)”, produzido por Paulo César Possamai (DH/FFLCH/USP ), dá destaque ao clero italiano que acompanhou a imigração trentina no brasil.
A presença de um sacerdote entre os
imigrantes dava-lhes um sentimento de segurança e de bênção ao movimento
emigratório, aumentando a identificação entre o campesinato e o baixo clero.
Contudo, o mesmo sentimento não se repetia com relação ao alto clero, que
identificava-se com as classes dominantes. Quando o bispo de Crema, na
província de Cremona, pediu aos presentes à missa que pensassem seriamente
sobre a decisão de emigrar, exortando os fiéis a não desesperarem-se, um após
outro, os camponeses abandonaram a igreja de Cascine Gandine, deixando o bispo
só. Para esses camponeses, seduzidos pelo sonho de fare l'America, o
bispo estava a serviço dos patrões (VILLA, 1993, p. 81).
Entre os agentes de emigração encontrava-se
um padre, que da central de recrutamento no Canal do Brenta, próximo a Bassano,
havia enviado ao Brasil, em 1877, mais de dois mil camponeses vênetos. A
maioria deles seguiu com destino ao Paraná (VILLA, 1993, p. 75). A escolha de
um sacerdote para o cargo de agente de imigração certamente tinha como objetivo
aproveitar a confiança que os camponeses depositavam no clero, sentindo-se
assim, mais seguros para tomar a difícil decisão de emigrar para um país
estranho'.
"Embora as causas que originaram o fenômeno
da emigração em massa na Itália da segunda metade do século XIX estejam
principalmente ligadas a fatores econômicos, também é muito importante
salientar a influência que a luta entre o Estado e a Igreja Católica tiveram na
decisão de emigrar de muitos camponeses, fortemente marcados pelo
conservadorismo e pelo espírito clerical.
A maioria dos imigrantes italianos que se
instalou no Rio Grande do Sul, a partir de 1875, provinha das regiões italianas
do Vêneto, Lombardia e Friuli e ainda do Trentino onde, pelo fato de pertencer
aos domínios da Casa de Habsburgo, apesar da maioria da população ser étnica e
culturalmente italiana, o movimento emigratório assumiu características
próprias com relação à emigração italiana propriamente dita.
Do século XI até 1805, quando foi cedido à
Baviera por Napoleão, Trento foi uma cidade-livre do Sacro Império
Romano-Germânico, governada por príncipes-bispos. A maioria da população
trentina era composta de camponeses (cerca de 90% da população total), cujo
caráter pragmático se preocupava mais com a cobrança das taxas e impostos e com
o número de soldados requisitados pelo governo do que com a nacionalidade dos
governantes.
Por isso uma das raras rebeliões ocorridas no Trentino aconteceu
em 1809, quando o governo bávaro tentou impor a conscrição obrigatória à toda a
população masculina da região. A revolta logo recebeu o apoio da Áustria, que
ambicionava anexar a província rebelde. A situação foi controlada por Napoleão,
que, através do Tratado de Paris, de 1810, transferiu o domínio político do
Trentino, da Baviera para o reino napoleônico da Itália.
Com a derrota de Napoleão, a Áustria ocupou
a região em 07 de abril de 1815, data marcada pela visita do imperador
Francisco I a Trento. Em 1816, o principado de Trento foi anexado à província
austríaca do Tirol, passando desde então a chamar-se oficialmente "Tirol
Meridional", numa clara tentativa de assimilação, já que o Tirol é uma região
caracteristicamente germânica. Naturalmente, essa atitude do governo austríaco
provocou descontentamento na população que, em 1848, enviou a Viena um
abaixoassinado pedindo autonomia administrativa para o Trentino.
O governo
austríaco não só ignorou o pedido como, em 1854, proibiu o uso do nome
"Trentino" que, a partir de então deveria ser substituído por
"Tirol Meridional" ou "Tirol Italiano" (GROSSELLI, 1986, p.
22-28).
Contudo, a luta nacionalista pela
unificação do Trentino à Itália era uma preocupação marcadamente burguesa e
citadina, já que os camponeses não engajaram-se na luta. O conservadorismo e o
clericalismo eram as bases da sociedade trentina, majoritariamente camponesa,
por isso a ocupação de Roma em 1870 significou a falta de apoio popular à
unificação com a Itália, acusada de usurpar os domínios temporais do Papa.
O
jornal católico "Voce Cattolica" assim definiu o liberalismo em
16.09.1870: "Il liberalismo, come vedemmo, altro non è in sostanza che la
ribellione sistematizzata a Dio Creatore e Redentore nell'ordine naturale e
soprannaturale; altro non vuole, che la scristianizzazione dell'individuo,
della famiglia e della società, e la distruzione della Chiesa Cattolica"
(apud GROSSELLI, 1986, p. 33).
Essa posição anti-liberal do clero e, por
sua influência, da maior parte da população do Trentino, marcou os imigrantes
trentinos no Brasil, onde faziam questão de diferenciar-se dos
"italianos" como "tiroleses", não tanto por nacionalismo
austríaco ou fidelidade à Casa d'Áustria mas, sim por não pertencer a um país
condenado pela Igreja pelo seu liberalismo anti-clerical. De fato, a Igreja
Católica foi para o campesinato trentino, como também para o italiano, o que o
Estado nacional foi para a burguesia emergente e o que foram os sindicatos e os
partidos políticos para o proletariado urbano. Na Igreja se formavam os quadros
dirigentes do campesinato, para o qual o padre não era somente um sacerdote,
mas também um líder intelectual.
A moral camponesa era a moral católica e a
verdadeira autoridade reconhecida por essa grande parcela da população era o
clero (GROSSELLI, 1986, p. 142).
A emigração em massa não se explica, pois,
somente pela fuga à pobreza e, por vezes, à miséria em que viviam os camponeses
italianos e trentinos. Sob a liderança do clero, os emigrantes buscavam
reconstruir na América uma sociedade que passava por profundas transformações
na Europa em conseqüência do avanço das idéias liberais e socialistas, da
urbanização crescente, da industrialização e do militarismo (GROSSELLI, 1986,
p. 145-154). A fim de fugir da nova ordem, uma parte do clero acalentou o ideal
de reconstruir no Novo Mundo uma sociedade camponesa e clerical. Um sacerdote
da província italiana de Treviso chegou a afirmar "que estando a religião
em decadência na Itália, justificava-se emigrar para a América a fim de aí
estabelecer-se uma colônia piedosa" (DORE, apud AZEVEDO, 1975, p. 63).
A emigração em busca de trabalho em países
vizinhos já era tradicional entre os habitantes do norte da Itália e do
Trentino, porém, com a chegada dos agentes de imigração às aldeias italianas
retratando os países americanos como um verdadeiro Éden, surgiu uma verdadeira
"febre americana" entre os camponeses italianos. A emigração desse
período não foi um fenômeno individual, mas de grupo, e, se esse verdadeiro
êxodo se desenvolveu num clima relativamente pacífico, isso foi devido à
influência do clero, que procurou evitar o surgimento de tensões entre as
classes sociais no momento da partida, que, por vezes se assemelhava a uma grande
procissão, quando os emigrantes seguiam o caminho para o porto de embarque
acompanhados pelo som dos sinos, precedidos por um cruz ou o estandarte de um
santo (VILLA, 1986, p. 75-76).
Nesses grupos de emigrantes partia tanta
gente que, por vezes, a inteira população de uma aldeia decidia emigrar em
conjunto, situação dramática que levou muitos párocos a aderir e mesmo liderar
o movimento emigratório. Entre os padres que acompanharam grupos de emigrantes
encontramos o padre trentino Bartolomeu Tiecher que, em 1875, partiu rumo ao
Brasil na companhia de um grupo de 208 imigrantes italianos e 392 trentinos,
entre os quais se encontravam seus pais e irmãos. Chegando ao Rio Grande do
Sul, o padre Tiecher foi nomeado pelo governo imperial capelão da Colônia de
Santa Maria da Soledade do Farromeco. Em 1886 tornou-se vigário da recém-criada
paróquia de Garibaldi (RUBERT, 1977, p. 47-50).
O padre Domenico Munari, pároco de Fastro,
diocese de Pádua, ofereceu-se para emigrar junto com seus paroquianos e, em
1876, partiu com um grupo de 275 imigrantes italianos que embarcaram em
Bordéus, na França, rumo ao Brasil. Apesar do navio em que viajavam ter
naufragado próximo a La Rochelle, ele e seu grupo retomaram a viagem ao Rio
Grande do Sul, onde Munari estabeleceu-se como o primeiro pároco de Bento
Gonçalves (RUBERT, 1977, p. 51-53)”.