Assim começa a obra Brás, Bexiga e Barra Funda, livro que eternizou o nome de Antonio de Alcântara Machado na história da literatura brasileira.
"ARTIGO
DE FUNDO
Assim
como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal deve
ter artigo de fundo. A fachada explica o resto.
Este
livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos:
nasceram
notícias.
E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.
Brás,
Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.
Durante
muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas
xingaram de tristes: as três raças tristes. A primeira, as caravelas
descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de "mostrar suas
vergonhas". A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta
se enamoraram das moças "bem gentis" daquela, que tinham cabelos
"mui pretos, compridos pelas espadoas". E nasceram os primeiros
mamalucos. A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e
servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, munibandas,
macumas. E nasceram os segundos mamalucos.
E os
mamalucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil. O colosso
começou a rolar. Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças
aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na
terra brotou e se alastrou como aquela planta também imigrante que há duzentos
anos veio fundar a riqueza brasileira.
Do
consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante
com a
indígena
nasceram os novos mamalucos. Nasceram os intalianinhos. O Gaetaninho. A
Carmela.
Brasileiros
e paulistas. Até bandeirantes.
E o
colosso continuou rolando. No começo a arrogância indígena perguntou meio
zangada:
Carcamano
pé-de-chumbo
Calcanhar
de frigideira
Quem
te deu a confiança
De
casar com brasileira?
O
pé-de-chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A
brasileira, per Bacco!
Mas
não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou.
E o
negro violeiro cantou assim:
Italiano
grita
Brasileiro
fala
Viva
o Brasil
E
a bandeira da Itália!
Brás,
Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é,
tenta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e
quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais
nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não
aprofunda.
Principalmente
não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de doutrina.
Tudo
são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O
aspecto étnicosocial dessa novísima raça de gigantes encontrará amanhã o seu
historiador. E será então analisado e pesado num livro.
Brás,
Bexiga e Barra Funda não é um livro. Inscrevendo em sua coluna de
honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma
homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca. São nomes de literatos,
jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos
eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida
espiritual e material de São Paulo.
Brás,
Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.
A REDAÇÃO"