sábado, 15 de maio de 2010

Oriundi - Nasce uma estrela: Cacilda Becker Yáconis (2)

No site Revista da História (USP), Joceley Vieira de Souza escreve sobre o livro CACILDA BECKER: FÚRIA SANTA, uma biografia da atriz de autoria de Luis André do Padro.

"Seria na cidade de São Paulo que firmaria sua carreira e confirmaria seu talento: convidada por Décio de Almeida Prado passou a integrar o elenco de amadores do Grupo Universitário de Teatro (criado e dirigido pelo intelectual) vinculado ao Fundo de Pesquisa da USP. Sua interpretação de Brízida Vaz, em O auto da barca do inferno (1943), de Gil Vicente rendeu-lhe algum reconhecimento e daí para o Teatro Brasileiro de Comédias-TBC02 foi um passo.

Nesse grupo de amadores foi a primeira a se profissionalizar, assinando um contrato de trabalho e recebendo mensalmente o mais alto salário. Protagonizou inúmeros sucessos, grandes clássicos da dramaturgia mundial e a cada montagem seus dotes artísticos eram melhor elaborados, o sentido da arte era apreendido, dado o alto nível de erudição dos diretores estrangeiros com quem trabalhou e se formou.

Dessa maneira, o respeito como artista foi se solidificando à medida que galgava o lugar definitivo como principal intérprete de sua época. Sua notabilização foi tamanha que desmentiu o presságio do diretor polonês Zbigniew Marian Ziembinsky, segundo o qual ela nunca seria uma atriz".

Oriundi - Nasce uma estrela: Cacilda Becker Yáconis (1)

O teatro brasileiro tem sua eterna primeira-dama: Cacilda Becker Yáconis, filha imigrante italiano, que, se viva, completaria em 2010, 89 anos. Heloisa Pontes, professora do Departamento de Antropologia da Unicamp é autora do texto “A burla do gênero: Cacilda Becker, a Mary Stuart de Pirassununga”. A docente assim escreve sobre a inserção da atriz no mundo da dramaturgia.

"Quando Cacilda nasceu, em 1921, os pais moravam num sítio em Pirassununga, numa casa de pau-a-pique sem água encanada (cf. Prado, 2002, p. 35). Aos seis anos, ela e suas duas irmãs mais novas, Cleyde e Dirce, mudaram-se para São Paulo, com a mãe Alzira Becker (filha de imigrantes alemães protestantes que para cá vieram em 1860) e o pai Edmundo Radamés Yacónis (descendente de gregos e italianos calabreses que imigraram para o Brasil em 1880). Moraram um ano num bairro de periferia.

O pai passava a maior parte do tempo longe das filhas e da mulher, que praticamente tinha de sustentá-las sozinha. Sem a proteção da família extensa, que ficara em Pirassununga — e lá vivia em situação de extrema pobreza, enfrentando os 'vícios da pobreza' e as necessidades superadas 'à custa de dolorosas e vergonhosas humilhações' —, Cacilda, a mãe e as irmãs atravessaram um dos períodos mais difíceis de suas vidas. Nas palavras da atriz, 'até passamos fome. Fui obrigada um dia a roubar um pé de verdura para o almoço. Machuquei o pé e tive tétano.

Roubar, acho que não foi importante: a fome é que me dói até hoje' (trecho de depoimento de Cacilda Becker, cf.Vargas e Fernandes, 1995, p. 24). A relação dos pais, que já era ruim, tornou-se insustentável nesse período, culminando com a separação, em 1929, e a volta de Alzira e suas três filhas para a casa dos avós maternos em Pirassununga. Pouco tempo depois, com o novo emprego da mãe, que se tornara professora primária numa escola rural localizada numa fazenda a sessenta quilômetros de Pirassununga (e cujos trabalhadores eram, em sua maioria, imigrantes japoneses ou descendentes), Cacilda tomou para si a tarefa de 'substituir' o pai.

A decisão, acalentada no ano 'mais amargo e marcante' da sua vida, foi tomada numa noite de insônia, quando teve a clara noção de que 'virara gente'. Tinha então nove anos. A partir daí passou a "agir como um pai" e "obrigou" a mãe a deixar a fazenda e ir para Santos, para que ela e as irmãs pudessem estudar. Em suas palavras, "nós éramos três meninas. Lindas, inteligentes, sensíveis, precoces, com mamãe. Abandonadas pelo papai. Praticamente sozinhas no mundo. E a vida foi dura" (Idem, p. 28).

Em Santos, moravam em um chalé de madeira alugado. Dos três cômodos, um foi transformado em sala-cozinha. O banheiro ficava do lado de fora da casa, no chuveiro apenas água fria. A mobília era improvisada com caixotes pintados. Graças ao trabalho da mãe como professora primária, puderam voltar à escola e concluí-la sem as interrupções freqüentes de antes. Os uniformes eram costurados à mão, reaproveitando roupas usadas; os cadernos escolares, confeccionados com folhas de papel de embrulho (cf. Prado, pp. 75-77). Sapatos eram artigo de luxo. Cacilda tinha 14 anos quando usou o primeiro par. Entende-se, assim, que ela não tivesse saudades da adolescência. O que não quer dizer que fosse infeliz. Pois se a pobreza era muita e o conforto quase nenhum, ela e as irmãs tinham, em "compensação", uma liberdade de movimentos maior que a habitual na época para as moças solteiras.

Cacilda que adorava dançar, experimentou-se como dançarina moderna e amadora, travando contatos e amizades interessantes, como a de Flávio de Carvalho (que por ela se enamorou) e de Miroel Silveira, que, além de lhe franquear o acesso à intelectualidade e aos artistas de Santos que freqüentavam a casa de seus pais, foi o maior responsável pela inserção de Cacilda no mundo do teatro. Vendo que a vontade dela de se tornar dançarina profissional tinha poucas chances de se concretizar, e estando a par das transformações em curso no teatro carioca, Miroel escreveu para a encenadora Maria Jacintha indicando Cacilda, que a aproveitou na peça que o Teatro do Estudante estava em vias de montar: 3200 metros de altura, apresentada em 1941. Nela e no papel de Zizi, Cacilda fez a sua estréia no teatro”.