terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Oriundi (Cinema) - Mazzaropi, o caipira ítalo-brasileiro (2)

Antônio da Silva Câmara, pofessor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris VII, com pós-doutorado pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), França é autor do trabalhoMAZZAROPI E A REPRODUÇÃO DA VIDA RURAL NO CINEMA BRASILEIRO . Uma das abordagens feitas pelo acadêmico brasileiro passa pela análise da crítica à obra de Mazzaropi.


"O cinema de Mazzaropi realizado nas décadas de 1950 e 1960 encontrou, por parte dos críticos de cinema, após breve acolhida positiva, bastante resistência. O Brasil que os intelectuais esperavam coincidia com a ideologia desenvolvimentista: um país que rapidamente se industrializava, aproximando-se da modernidade dos países desenvolvidos".

"O discurso político vigente na segunda metade da década de 50 manifestava-se no slogan de JK, com a promessa de cinqüenta anos de desenvolvimento que seriam cumpridos em apenas uma gestão presidencial. Por outro lado, esta modernização identificava-se com a urbanização acelerada e uma pretensa mudança dos hábitos da população brasileira, vista agora como citadina, moderna, democrática. A idéia de modernização também estava presente nas concepções à esquerda que apoiavam a existência de um forte movimento camponês – as Ligas Camponesas (1954-1964) – que deveria representar a mudança dos padrões arcaicos de posse e uso da terra".

"Logo, admitia-se a existência do camponês, mas apenas enquanto sujeito ativo da moderna história brasileira: revolucionário, anti-latifundista, com um programa de luta popular e democrático Neste período, os intelectuais de esquerda identificavam-se com as diretrizes do Partido Comunista, forte aliado do desenvolvimentismo e do populismo. O golpe de Estado de 1964 impôs a derrota à democracia populista, ao movimento camponês e aos partidos de esquerda, sem, no entanto, abandonar o percurso desenvolvimentista: os militares retomaram os planos de crescimento econômico que caracterizaram a era JK e implantaram projetos de industrialização e urbanização".

"O Estado continuou a cultivar a imagem de um país moderno e urbano, ainda que saibamos que os latifundiários – do Norte ao Sul – sustentavam o regime. Aliás, na década de 1970, a ideologia do desenvolvimento é de tal forma dominante que deu origem, nas Universidades, a uma série de estudos sobre a penetração do capitalismo, privilegiando as grandes inversões de capital na nova indústria rural e o processo de proletarização camponesa".


"Neste contexto, a crítica cinematográfica continuou oscilando entre o desenvolvimentismo e o stalinismo. Poucos críticos de cinema escaparam desta armadilha. Foram incapazes de analisar as produções cinematográficas sob o ângulo artístico e o da contribuição que estas aportavam para a compreensão do modo de vida da população brasileira e, dessa forma, de afastar-se da ótica daqueles que viam as manifestações culturais a partir de suas próprias aspirações políticas e sociais, "

"O cinema de Mazzaropi conseguiu impor-se durante duas décadas, graças à ampla aceitação e reconhecimento conquistado junto ao público, revelando o lado não revolucionário do camponês brasileiro, particularmente daquele que habitava o interior do Sudeste, os seus hábitos conservadores, mas também a sua sabedoria e capacidade de enfrentar o mundo urbano através de um comportamento esquivo e dissimulado".

Antônio da Silva Câmara cita uma série de artigos publicados em grandes jornais classificando o cinema de Mazzaropi como algo desprovido de valor ou como chegou a escrever Inácio de Loyola Brandão, algo vulgar e imbecil. "Nosso povo vive dentro de um estágio cultural condicionado pelo subdesenvolvimento. Sob tal condição, é natural que a exaltação da mediocridade vingue. Compreende-se que o homem do povo aceite, até por desfastio, o cinema banal, vulgar, incipiente, imbecil. Falta-lhe, além de um gosto apurado, a oportunidade de conhecer obras superiores. Todavia, quando um homem tido como de cultura, tendo em suas mãos um instrumento de divulgação, senta-se numa poltrona de cinema e aprecia o vulgarismo, a imbecilidade, o primarismo (e ainda recomenda como de alto teor), então, é a mediocridade, é o andar para trás. Neste caso, ele se emparelha àquele que, na tela, vende por baixo preço, a cretinice".



Ainda hoje, o preconceito ronda a cinematrografia de Mazzaropi. Mas há vozes que procuram resgatar o valor de sua obra como mostra o professor Antônio Câmara. Ele cita reportagem de Maria da Glória Lopes, do jornal da Folha de S.Paulo, que nos anos 90 comentava o Festival Mazzaropi exibido pela TV Cultura.
" 'Esta é uma oportunidade para reavaliarmos o trabalho de Mazzaropi, todo ele muito bom do ponto de vista cinematográfico', diz o apresentador do programa e crítico de cinema Luciano Ramos. 'O primeiro filme do Festival, Sai da Frente, é uma comédia avançada para a época e, na minha opinião, a primeira na história do cinema nacional. Até então, as comédias eram pantomimas que os atores faziam em frente à câmera. E Sai da Frente não é uma história e sim fragmentos de várias, uma associação de quadros que lembram muito as comédias que viriam nos anos 60'. A autora completa o seu artigo afirmando: 'E o sucesso não só se explica porque os filmes são muito bons. Mas a melhor explicação para o fenômeno Mazzaropi foi dada pelo escritor Inácio Araújo. “A crítica nunca esteve com ele porque Jeca representa o Brasil subdesenvolvido, analfabeto, que ela não quer ver. Para o público, ele representa a vingança dessa massa de migrantes que vem do campo e se defronta com os códigos da cidade grande. É a malícia do campo contra a malícia da cidade. E a primeira ganha' ”

Oriundi (Cinema) - Mazzaropi, o caipira ítalo-brasileiro (1)


Racismo, religião e política foram alguns dos temas que o ator e cineasta Amácio Mazzaropi abordou ao longo de sua carreira artística. “Sua italianidade, assimilada à caipirice, evidencia a permanência de uma cultura que envolve elementos fundamentais de dois modos de vida: o rústico e o do imigrante, ameaçados pelos tentáculos impessoalizantes da sociedade de consumo, e que resistia bravamente contra as características da economia capitalista (do livro Mazzaropi: o jeca do Brasil de Glauco Barsaili - Campinas: Editora Átomo, 2002).

A história dos Mazzaropi no Brasil data do início do século XX quando o casal Amazzio e Anna deixam a Itália, acompanhados de seus filhos, entre eles Bernardo. Para a família, o “Far l’América" significou, num primeiro momento, trabalhar na agricultura (Dourados – SP e depois no Paraná). Uma rápida biografia do autor pode ser consultada no site Em 1910, Bernardo Mazzaropi (motorista de automóvel de aluguel) já casado com Clara Ferreira (empregada doméstica) muda-se para São Paulo. Dois anos mais tarde, numa casa no bairro de Santa Cecília (região central) nascia Amácio Mazzaropi.

Em 1922, os Mazzaropi fixam residência em Taubaté (SP) e Amácio é matriculado no Ginásio Washington Luís. Em casa, estuda e decora textos do livro Lira Teatral. No monólogo Chico, imita um tipo caipira que agrada em cheio numa festa da escola. Nascia aí a veia mais forte de Mazzaropi que anos mais tarde, depois de passar pelo teatro e pelo rádio, viria a inserir, de maneira marcante, o seu nome na história do cinema nacional. Uma rápida mas interessante cronologia da vida do ator e cineasta pode ser encontrada no site Museu Mazzaropi

Na visão Edilene Maia e Moacir José dos Santos no trabalho que realizaram na Universidade de Taubaté/ Departamento de Comunicação Social, “a obra cinematográfica desenvolvida por Amácio Mazzaropi contribui para a consolidação de uma memória social sobre o caipira”.


Os autores lembram que os “traços estereotipados apresentados nos filmes exageram o estranhamento cultural entre o homem do campo e o universo urbano. Os seus filmes constituem o registro da agressiva urbanização brasileira, com conseqüências profundas na memória social. A cidade é apresentada como voraz, os habitantes não se importam em levar vantagem sobre a suposta incapacidade do caipira em compreender as relações urbanas”. 

“O caipira, símbolo da simplicidade e bondade do homem do campo é apresentado, simultaneamente, como ingênuo, ludibriável, e como engenhoso, capaz de simular a própria ingenuidade, mas leva vantagem no desfecho das situações em que está envolvido”.

“No filme Tapete Vermelho essa caracterização do caipira é recuperada, constituindo metalinguagem que ilumina os traços principais do trabalho de Mazzaropi. O enredo aponta os principais conflitos que o público dos seus filmes enfrenta, como o fechamento das salas de cinema, transformadas em templos religiosos e os restantes, concentrados em locais de intenso consumo, shopping centers, não exibirem produções sobre o homem do campo”.

Soleni Fressato, pesquisadora da Univeridade Federal da Bahia lembra, num , trabalho sobre Amácio Mazzaropi  que caipira é o personagem emblemático em todos os seus 32 filmes, mesmo naqueles em que a narrativa transcorre no meio urbano, ele o personificou, inspirado nos precursores José Gonçalves Leonardo e Sebastião Arruda. “O caipira representado por Mazzaropi, característico do interior do estado de São Paulo, diferente do almejado pela ideologia desenvolvimentista, utiliza-se de práticas conservadoras para enfrentar as adversidades”.


“Inserido num contexto socioeconômico de avanço das práticas capitalistas e das injustiças sociais que compunham as relações no campo, inclusive a luta pela terra, o caipira não abandona, nem deixa corromper seus valores tradicionais baseados na honestidade, na solidariedade e nos laços familiares. Diante do exposto, a presente comunicação tem por objetivo analisar de que maneira e em que medida o caipira representado pelo cineasta Amácio Mazzaropi, se contrapõe às práticas capitalistas, tendo por fonte de pesquisa o filme Jeca Tatu (direção de Milton Amaral, 1959)”.

Para Luiz Otavio de Santi, autor do documentário "Mazzaropi: Feição e Prosa” Amacio Mazzaropi foi um cineasta do povo.”Na medida em que o público popular faz parte do cinema, Mazzaropi é a referência. Fez 32 filmes, dos quais 24 com dinheiro próprio, um caso único no cinema nacional. Como ele mesmo dizia, troféu não paga as contas, portanto ele sabia que sua estética poderia ser questionada, mas seu contato com o povo não".